A Aventura da Subversão.

Longe vão os tempos dos Jogos Florais do Século XIV, onde os Jugulares e Trovadores das Cortes de então competiam com poesias e músicas, festividades essas onde se destacavam as qualidades artísticas dos intervenientes. Já anteriormente existem relatos situados cerca do ano 1000, de reuniões de Jugulares no lugar de Fécamp, na Normandia, ou seja, praticamente duzentos anos antes da criação das primeiras Universidades na Europa Central e que, desde o seu início, tinham na música uma das suas sete artes liberais como base de formação do seus alunos.

Converteram-se os certames de tunas, essencialmente na vizinha Espanha dos anos sessenta do Século passado, em meios motivadores para viagens, conhecimento de novos lugares, gentes, culturas e também como alimento retroactivo a nível musical, engrossando assim, repertórios. O convívio entre Tunas e Tunos é geneticamente estruturante da essência histórica dos certames que, assim, possibilitavam uma clara e sã convivência em torno de várias artes liberais, sendo a música uma delas mas seguramente não a única.

Quando na vizinha Espanha o certame de tunas competitivo tinha atingido já um estágio de evolução considerável, ressurgem as primeiras tunas em Portugal e logo, os primeiros certames competitivos, constatando-se aqui o delay entre os dois lados do fenómeno neste capítulo, sendo certo que o modelo de certame competitivo espanhol, na sua organização, características e logística, é sumariamente importado pelos Tunos portugueses.

Mormente essa importação do modelo, é notório que a noção de vivência tunante num certame de tunas em Espanha é distinta da noção lusa de certame competitivo. Só agora, em 2006, o mais antigo certame de tunas realizado em Portugal, com carácter anual, vê atingir as vinte edições consecutivas, quando há vários certames espanhóis com mais de vinte anos ininterruptos e alguns mesmo com quase 30 anos ou mesmo 30 de edições anuais, o que é sintomático.

A própria noção de certame na vizinha Espanha foi ela mesmo sofrendo evoluções ao longo dos últimos quarenta anos, por consequência dos tempos mais ou menos favoráveis ao desenvolvimento tunante espanhol. O Certame em Portugal decalca nos traços primários e genéticos o modelo organizativo espanhol, adaptando-se à realidade nacional, numa altura ainda pueril do (re) surgimento das tunas académicas e/ou universitárias em terras Lusas, ávido de modelos a seguir e que, naturalmente, os vai “beber” ao exemplo mais próximo, mormente em finais dos anos Oitenta, inícios de Noventa do Século XX os certame com carácter periódico não proliferarem em Espanha.

Como anteriormente vimos e por uma observação histórica até, tem o certame de tunas uma clara vertente competitiva sendo claro que essa vertente não é a única, devendo e no caso de uma tradição como sendo a tunante, existir uma forte ligação entre todas as vertentes que o certame competitivo abarca; a competitiva é apenas uma das várias existentes, como sendo a vertente cultural, a vertente representativa, a vertente socializante intra e extra-tuna, a vertente benéfica, etc, para lá da clara e objectiva defesa intrínseca dos nobres e antigos valores culturais que caracterizam e distinguem, desde logo, a Tuna Académica e ou universitária, logo, distinguem por força de tal desiderato, um certame de tunas de um qualquer certame competitivo musical, como o da Eurovisão por exemplo.

O Certame competitivo é um meio e não um fim em si mesmo, é um momento de prossecução de uma cultura secular e de reiteração de usos e costumes próprios do fenómeno cultural em causa, distinto por tal de qualquer outra manifestação, cultura ou tradição que, porventura, possua no seus alicerces genéticos a vertente competitiva como forma de divulgação ou propagação de uma dada cultura específica. No que se refere ao certame em território nacional, o mesmo assumiu desde cedo uma inflação desregrada e descontrolada quer no número de eventos realizados sazonalmente – Portugal destaca-se claramente em quantidade face a qualquer outro país onde existe a Arte do Negro Magistério – quer na exagerada importância que a vertente competitiva assumiu e assume ainda hoje, provocando uma diminuição e esvaziamento de conteúdo programático, bem como de significado real do certame como sendo UMA das manifestações que qualquer Tuna pode e deve realizar, entre OUTRAS tão ou mais respeitáveis que o certame, na sua actividade normal.

Várias explicações subsidiam a anterior noção de inflação desregrada dos certames competitivos em Portugal, causas essas que em alguns casos se foram “travestindo” elas mesmas ao longo dos últimos vinte anos em Portugal mas que, no essencial e mesmo “camufladas” aqui e ali, continuam a existir e a persistir, procurando alguns agrupamentos escamotear essas causas em função das suas próprias conveniências.

A procura quase “obsessiva” tão e só de qualidade musical é um dos factores mais importantes que contribuem para o desvirtuar claro e objectivo da essência do certame de tunas enquanto tal. A procura única e exclusiva de qualidade musical sem olhar a todos os outros itens que realmente interessam e caracterizam o fenómeno tunante, torna o certame de tunas num festival de música, coisas distintas portanto. Casos há - perfeitamente detectados - de agrupamentos que quase se “envergonham” de assumir a sua suposta natureza denominativa de Tuna, o que é grave se estivermos a abordar “o festival de tunas” e não “o festival de música”.

Mais causas directas e/ou indirectas há, como atrás referi e que ajudam a subsidiar a referida noção de inflação desregrada da parte competitiva do certame de tunas:

- Os certames tornaram-se, a par das tunas que os promovem, veículos de afirmação pública, uma espécie de “parada militar em plena Praça Vermelha” onde a Tuna mostra todo o seu “arsenal” o que, à partida não é negativo mas quando de forma exagerada, tornam-se em claras manifestações de narcisismo tunante perfeitamente evitáveis;

- Os certames foram uma forma simples e eficaz das Reitorias fazerem publicidade às suas instituições, publicas ou privadas, num mercado liberal a nível do ensino superior; quando deixaram de servir esse interesse, pura e simplesmente as reitorias deixaram de apoiar estes eventos, tornando o festival de tunas não numa manifestação cultural mas antes numa espécie de outdoor descartável ao sabor das conveniências;

- A noção que ainda hoje toda e qualquer tuna – quase todas – tem de que uma Tuna sem festival é “como um jardim sem flor”; Noção errada como se constata hoje em dia até. Não ter um certame competitivo foi e é visto como uma falta de credibilidade entre pares e que diminui a credibilidade de quem não o organiza, noção que é falsa porque deriva do que possam achar as outras Tunas e não o público, a sociedade em geral.

- A – absolutamente falsa – noção que do certame competitivo se retira única e exclusivamente uma espécie de escalonamento – ou como se diz hoje, ranking – qualitativo quando tal noção é objectivamente impossível de aferir porque nunca foi aferida de facto e dificilmente o será, como qualquer pessoa pode constatar;

- A noção real de “carrossel de certames”, ou seja, certames que funcionam em circuito fechado quer nas organizações, quer nas participações; É legítima a existência da noção de “carrossel de certames” mas é tão legítima quanto prejudicial ao todo do fenómeno, não porque promove qualidade mas antes porque indicia a noção de cartel tunante subjugado a interesses menores – como alguns “acertos de contabilidade” - face ao interesse maior de uma cultura.

- O equívoco maior: Quando se dá a um festival de música universitária a designação de “Festival de Tunas”. É uma falácia, é desonesto face ao público que compra bilhetes julgando estar na presença de um espectáculo em concreto e acaba por presenciar algo parecido mas não exactamente um Festival de Tunas. Contribui para este cenário a postura de algumas organizadoras ao convidarem grupos “para-tunantes” que não tunas; é certamente legitimo que o façam mas então alterem a denominação do espectáculo, porque se está a promover um falso produto.

Parece claro e inequívoco que tais conclusões empíricas nada têm a ver em rigor com a essência do certame de tunas entendido de forma tradicional, porque redutor: Bastaria uma qualquer festa com uma qualquer competição associada, não carecendo que à mesma lhe seja dado o atributo de Festival de Tunas pois este tem e possuí muitos, vários e outros importantes aspectos que, hoje, estão absolutamente relegados para 3º plano ou pior, ou mesmo pura e simplesmente são escamoteados.

Vários pensadores têm apontado a existência de um fenómeno recente e que deriva da má gestão do certame competitivo: o surgimento de agrupamentos “para-tunantes” que exclusivamente assentam a sua existência em certames competitivos, sendo que tal conclusão deriva da observância do mesmo no terreno, à falta de outras actividades e posturas tradicionais das mesmas que comprovem o oposto. Ou seja, o Certame competitivo possui em determinados quadrantes a mesma importância que a água tem para o peixe, concluindo-se até que a deficiente noção de certame em Portugal originou a criação de agrupamentos.

Outra consequência derivada deste cenário é outra recente manifestação e prática reiterada, o desdobramento de um mesmo agrupamento que lhe permite estar em dois certames competitivos à mesma hora e em diferentes locais, fruto seguramente da inflação de eventos que ocorrem anualmente, queremos crer com alguma ingenuidade consentida.

Só recentemente se iniciou um esforço de harmonização de critérios avaliativos, em vários pontos cardeais do nosso território, matéria que ajuda ao prestígio da questão competitiva, algo que até há pouco era assunto inexistente sequer, havendo por isso, interpretações variadas na questão avaliativa em certame competitivo. É evidente que quanto maior a confusão e a disparidade de critérios na avaliação, menor será o prestígio e logo, o contributo do certame de tunas face ao fenómeno. Se há competição, assuma-se a mesma de forma saudável e preferencialmente, de forma mais ou menos harmoniosa e harmonizada com respeito pelas sinergias concretas de cada certame e tuna organizadora, certamente.

Os critérios gerais na avaliação competitiva são universais e tradicionais e não sujeitos à vontade déspota de uma ou outra organizadora. A questão da avaliação criteriosa dos parâmetros nos vários apartados a concurso deve obedecer a dois momentos: Um prévio ao certame indicando aos participantes quais os critérios a serem analisados pelo Jurado e outro, em simultâneo ao certame que será a correcta e coerente aplicação no terreno dos mesmos critérios atempadamente informados a quem irá competir.

Sendo certo que se poderá criar prémios e fazer desaparecer outros, também é certo que existem sempre critérios para todos os que existem. Aqui – como em tantas outras matérias tunantes – existe muita invenção e pouco cuidado na prossecução natural e tradicional dos critérios de avaliação de um certame de tunas.

A enorme confusão que tudo isto gera não contribui para o prestígio do fenómeno, antes aumenta a densidade dos erros existentes e serve os interesses de quem não promove os valores tunantes. A escolha competente de um Jurado não é condizente com o actual estado de circunstâncias em muitos certames nacionais; O Sr. Presidente da Junta de Freguesia é merecedor de todo o respeito mas não domina, por princípio, a matéria a avaliar; da mesma forma que um Tuno nada percebe de gestão autárquica, certamente que o oposto será plausível.

É necessário terminar com algumas situações de clara promiscuidade na composição dos jurados, porque comprometedor da imagem da organizadora e do prestígio do evento. Nesta matéria não há soluções claras e infalíveis mas antes há sim coisas que devem ser evitadas desde logo.

Não interessa neste estado de situação assacar responsabilidades pois o mesmo exercício só levará a maior ruído de fundo que, em primeira e última análise, não interessa à promoção da natureza REAL do certame competitivo. Existe algo claramente desviado do seu propósito e que urge requalificar urgentemente, reconduzindo o certame competitivo ao seu lugar natural.

O que não se pode entender como sendo o reconduzir do certame à má qualidade musical, antes pelo oposto. Não consigo encontrar qualquer dificuldade em coexistir alta qualidade musical com o cumprimento dos preceitos naturais do certame, cumprimento de critérios e honradez da cultura tunante. E muito menos entendo não ser possível coexistir qualidade musical com qualidade tunante, respeito, educação, amizade, etc.

Conclui-se, assim, que actualmente em Portugal, o certame competitivo assenta em bases erróneas, falsificadas, insertas por vezes em lógica de cartel e em alguns casos travestidas de tradição tunante e que raramente ou quase nunca contribuem para o reforço de uma cultura no seu todo, antes servem como “Autos de Fé” de algumas organizadoras ou então, numa visão mais simpática da matéria, como uma espécie de penoso cumprimento de calendário que assenta somente em duas vertentes “useiras e veseiras”: a competição pura e dura e a vertente lúdica nocturna regra geral com decibéis acima dos legalmente autorizados.

Vamos ser claros:

- Critérios avaliativos claros e previamente divulgados com clara defesa dos preceitos clássicos e tradicionais;

- Prémios mas também penalizações ou não atribuição pura e simples dos mesmos se assim se justificar;

- Promoção do convívio entre Tunos e Tunas no programa de actos do certame e sua valorização por oposição aos que presentes no evento mas “fechados” num qualquer camarim ou bastidor e que devem ser penalizados por isso,

- Jurado qualificado, conhecedor e respeitável, que dignifique na sua acção os preceitos tunantes tradicionais e que valore ou penalize em função dos critérios previamente estabelecidos de avaliação;

- Abandono da noção de certame como sendo um “Auto de Proclamação” das virtudes da organizadora; o auto-elogio fica sempre mal e demonstra insegurança de quem assim o faz;

- Certame de Tunas para a sociedade em geral e não certame de tunas para as outras tunas presentes e ausentes;

- Certames de Tunas onde todos sejam participantes e não só alguns, com outros transformados em meros figurantes; Penalizar fortemente quem chega tarde e sobe a palco de imediato, desaparecendo de seguida de um certame que tem por regra 48 horas e não 25 minutos;

- Certames que mostrem as suas cidades e vilas e o que de melhor e pitoresco as mesmas possuem;

- Certames abertos à sociedade com visitas a hospitais, lares de idosos, etc;

- Certames que sejam feitos ao ar livre e de forma gratuita tanto quando possível;

- Certames que sejam reconhecidos pelo Sr. Presidente da Câmara mas também pelo simples varredor de rua somente porque gosta de tunas e do exemplo que os Tunos e as Tunas podem dar;

- Certames que sejam momentos de partilha de uma cultura única e não certames fechados em si mesmos como se fossem uma espécie de “clube dos poetas mortos”

Os certames que retenho, pessoalmente, na minha memória de 16 anos de Tunas são, efectivamente, poucos, pois os restantes limitaram-se (e limitam) a ser repetições quer de si mesmos, quer de fotocópias mal tiradas, sendo que outros nem isso. Retenho certames onde cidades inteiras foram contagiadas para esta cultura, parando para prestigiar o Tuno que desfilava na rua com a sua alegria, cultura e animação musical, prestigiando com isso todos nós. Prestigio que era dado não pela sua música somente mas sim pela sua atitude, pela atitude tunante, logo, contagiante de forma positiva.

A competição saudável entre Tunas pressupõe a existência de saúde por parte dos seus agentes transmissores. Resta aferir, de facto, se o fenómeno português no capítulo do certame competitivo e mais adianto, no capítulo tunante em geral – goza de saúde suficiente para se perceber a si mesmo e, com, isso, auto diagnosticar-se. Receio que algum “paludismo” tunante esteja instalado aqui e ali. Mas não será menos verdade que os “antídotos” existem e são extremamente eficazes se aplicados devida e correctamente, a tempo e horas, sem receios ou medos que não fazem sentido.

O prémio do certame competitivo de tunas deve ser (re) colocado na esfera tunante – de onde nunca deveria ter saído – e não na esfera do “ranking FIFA”, passo a metáfora mas não a ironia.

O fenómeno deve respirar saúde e não aparentar “bons ares” onde até se diz que nunca se tocou tão bem como hoje. Até pode ser possível mas em Tunas isso é MAIS uma coisa e não a ÚNICA coisa que conta, que vale.

Termino finalmente com um exercício de contraditório: Retirem-se os Tunos, seus trajes, hábitos e costumes, instrumentos e alegria natural da vivência tunante, retire-se ainda a sua noção corporativista e demais características inerentes como, por exemplo, o cortejar da Donzela. Retirem tudo isto e coloquem em palco 5 ou 6 grupos ditos de “Tuna”. Estamos, porventura, perante um festival de tunas, por muito boa que seja a música que produzem?

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