A Aventura da Disciplina e da Representação...

Não, não é uma "Aventura" sobre Teatro, de todo. Adiante:

Entendo – sempre entendi, aliás, – a disciplina de grupo como algo que funciona de duas formas: devemos servir a disciplina e ela a nós. Ou seja, a procura cega de cumprimento de regras e normativos internos – no caso, de uma tuna – pode ser meio caminho andado para o efeito precisamente oposto. Já o cumprimento das regras e normativos de forma a gerir paulatinamente o desenrolar do grupo parece-me mais interessante. Aqui, como disciplinador que sou e sempre fui, posso dizer com toda a clareza e frontalidade que já fui alvo precisamente da mesma, em situações muito pontuais e que, lá está, corroboram a tal noção da disciplina a servir-nos. Não acredito – porque nunca acreditei – que a falta de disciplina de um grupo tenha uma única coisa que seja de positiva. Obviamente que por isso sou um disciplinador por natureza, interna e externamente.


Evidente que, dito isto, há duas coisas a verificar desde logo quando esse grupo regrado – com regras, portanto – interage fora do seu seio: Ou espelha a sua disciplina interna fora do seu grupo também (e interligadas estão, obviamente, as duas vertentes) ou então temos o binómio “virtudes privadas-vicios públicos”, ou seja, dentro do grupo tudo muito bem mas fora dele aquando da sua representação, tudo muito mal, um fartar vilanagem, não se observando a prática interna e sua disciplina. Ora, sendo a disciplina um reflexo da aplicação das regras internas, não deixa de ser algo paradoxal que, estando fora do seu seio interno, as mesmas não sejam observadas perante terceiros.

Agora, daquilo a que se convencionou chamar “representação” de um grupo, quando começa e termina a mesma:

A jurisprudência tuneril portuguesa nesta matéria – e não cabe agora discutir se bem ou mal – indica-nos claramente que a mesma começa quando devidamente trajados e com o símbolo ao peito da instituição onde estamos. Sem prejuízos de normativos internos que especificam claramente quem, quando, como e porquê essa representação se dá, por via de regra e aos olhos de terceiros a prática instituída do envergar do traje e seu símbolo aposto na Capa bastará para lhe conferir de imediato – excepto se claramente dito antes o oposto por quem e a quem de direito, o que na prática não vislumbro como, note-se – o estar em representação de. Como disse antes, não discuto se bem ou mal, mas é efectivamente – como me parece mais do que pacífico – que assim é. Será, em suma, Direito Consuetunidário de âmbito tuneril, no caso.

Se reparamos, ao não ser assim, terá então o comum mortal a opção de 1º) não se apresentar trajado ou 2º) ir trajado mas ocultando o símbolo então da instituição a que pertence. Ao não o fazer, está implicitamente a dizer a todo e qualquer terceiro que está na qualidade representativa em sentido lato do grupo ao qual pertence. Poderá, note-se, não o estar de forma oficiosa, oficial ou até delegada e/ou autorizada, como disse anteriormente, cada grupo terá os seus normativos quanto à noção de representação – e aí cabe ao mesmo decidir sobre a matéria e de forma soberana, logicamente.

Ou seja, a prática comum dita a “lei”, porque sempre aceite por todos que tal assim é e significa. Como é banalmente aceite que todo o individuo - que não atleta - vestido com a camisola do Barcelona é presumivelmente seu adepto, associando de imediato aos olhos de terceiros a relação existente, que é representar em sentido lato o Barcelona mas não de forma oficial e oficiosa o mesmo clube, como é bom de ver. Ou seja, os actos do adepto não vinculam legalmente a instituição da qual é adepto/associado mas por outro lado, os mesmos actos associam-se de forma indelével à instituição que defende. Porque óbvio e não carecendo de contraditório, avançemos.

Não se trata, portanto, da visão legalista tout court mas antes a visão que associa de forma evidente a instituição a determinado individuo. Só assim se compreende que, e num absurdo extremado, um adepto do Real Madrid vista a camisola do Barcelona, arremesse pedras ao autocarro do seu próprio clube mas que, aos olhos de terceiros, tenha sido um adepto do Barcelona a fazer tal. Ou seja, serve à noção de representação, sempre e em qualquer circunstância, a evidente associação que outros fazem entre determinado indivíduo e os símbolos que enverga, porta, carrega, mostra, ostenta. Nihil obstat . Ora, felizmente que, em tunas, ainda não se chegou a tanto, mormente a profusão de símbolos nas Capas de muitos, que poderá induzir em erro, até, nessa mesma associação.

Dito isto, quando termina então a dita representação lata da instituição a que um individuo pertence, partindo do pressuposto que ostenta o símbolo da sua intituição devidamente trajado? Termina quando termina o acto onde está presente? Termina quando chega a casa e se destraja? Termina quando ele bem entender, numa subjectividade colossalmente pertinente em razão de matéria, assunto e local?

A resposta à questão acima é só uma: Termina, sintomaticamente, quando o individuo quiser, como facilmente se depreenderá. O que desde logo, assumindo que tal final de representação ocorre em X momento, tal é a prova cabal de que essa representação em sentido lato existe, então; Ninguém termina algo que não começa. Ou seja, se alguém decide a dado momento que a representação termina está obviamente a assumir que a mesma representação então existiu, começou, continuou e assim terminou a dado tempo. Nem La Palisse diria melhor. O que nos leva a outra pergunta pertinente: Assim sendo, se subjectivamente cada individuo termina a sua representação quando bem entender, onde começa então a responsabilidade da sua instituição e termina a do individuo e vice-versa? Não haverá, nesta subjectividade, uma zona cinzenta, uma zona desmilitarizada, um Paralelo 38 onde ninguém representa nada nem nada é representado, com tudo o que isso significa? Não será algo perigoso escolher-se esse campo de ninguém de forma absolutamente arbitrária e pelo próprio interessado na matéria?

Não cabe, pois, na cabeça de ninguém na sua plenitude mental que, ao sair-se de casa orgulhosamente trajado e com o símbolo da sua instituição na Capa apenso e visivel aos olhos de terceiros está, em sentido lato, em não representação da mesma instituição. Se assim fosse, não se trajaria ou, fazendo-o, colocava a sua Capa de forma neutral, tão simples quanto isso. Ora, quem assume essa associação está obviamente a atravessar-se e a atravessar a sua intituição. Nada de mais simples por óbvio. O orgulho em se assumir publicamente os simbolos da sua instituição é directamente proporcional à responsabilidade em os carregar quer perante os seus, quer perante os outros.

Naturalmente que essa representação em sentido lato obedecerá, por regra, à noção de disciplina interna de um grupo. Há normas especificas para tal, em toda e qualquer instituição que se diz e quer respeitável e por isso, respeitada por terceiros. Nestas instituições regradas - assumindo que as há não regradas ou pior, nem sequer se preocupam com estas questões - esses normativos estão directamente entroncados com a noção de representação quer interna - caloiros assim, tunos asado, veteranos frito e assim sucessivamente - quer externamente à sua instituição. Ou seja, há uma relação entre a norma disciplinar interna e a representação de todo e qualquer dos seus componentes, esteja cada um deles na qualidade que estiver. Sumariamente, a representação de uma instituição está vinculada à disciplina interna da mesma.

Aos olhos de terceiros, parece por tal lógico afirmar que todo e qualquer estando trajado e com o simbolo apenso da sua instituição na Capa e em situação pública está a representar essa mesma instituição de uma forma geral, lata e abstracta. Aos olhos de terceiros, não lhes cabe aferir ou deixar de aferir se o mesmo individuo é mero adepto, simples componente, director de balneário ou Presidente do clube. É, para terceiros, tudo a mesma coisa. Os terceiros não têm de adivinhar, saber ou presumir sequer que essa representação do individuo X termina às zero horas do dia xpto, qual Cinderela, transformando-se daí em diante no Quim Manel. É precisamente por essa razão que existem os tais normativos de disciplina interna da instituição, a quem lhe cabe aferir -se assim o entender - como, quando e porquê o mesmo Quim Manel resolveu, arbitrariamente, deixar de representar a sua intituição e passar, em cima da sua charrete-abóbora, a ser o mero Quim Manel. Para todos os outros, passa-lhe completamente ao lado tal questão interna dessa instituição, será bom de ver; caso oposto, os terceiros estariam a imiscuir-se na disciplina interna e forma de representação de outros, o que não é todo lógico por inadmissivel até.

Tal assume importância quando confrontados, sistematicamente - e já dou de barato a profusão de trajares e simbolos em capas a parecer um exame de Código da estrada e afins... - com a mais que natural, porque jovial, "cagança" e orgulho em se polir o simbolo da instituição de forma pública. Provavelmente porque tudo corre lindamente, estas questões são, digamos, naturais e não carecem de reflexão como a presente. Acontece é que, felizmente, alturas há em que esta reflexão assume toda a pertinência. Chegados aqui, algo teremos a concluir, seguramente.

Assim, surge a 1ª conclusão: A disciplina interna de um grupo está directamente relacionada com a representação dessa mesma instituição mesmo que em sentido lato, abstracto e universal. Sendo um instituição regrada, mais não lhe resta que assumir de forma pacífica por óbvia que a representação em sentido lato bem como a representação institucional obedece a regras internas que procuram, com as mesmas, assegurar a imagem pública e privada dessa mesma instituição. Tudo o resto são questões paralelas à questão principal, devendo ser tratadas precisamente no âmbito restricto dessa mesma instituição. Nada de mais óbvio.

A 2ª conclusão: Se o adepto do Barcelona atira uma pedra ao autocarro do Real Madrid que passa na Cibeles em noite de derby, parece óbvio que nem sequer qualquer outro adepto do Barcelona presente e por tal, assistente presencial do acto, irá negar tal, mesmo que alegando que a 1ª pedra partiu do interior do autocarro do Real Madrid. Em suma, quem fica mal no momento é a instituição Barcelona, ponto período, por muito que se prove até a legitima defesa, protecção própria e defesa da honra. Não discuto se está certo ou errado, repito; constato o que é evidente apenas. Mais não resta ao Quim Manel que se defenda enquanto individuo que é, pois não estou a ver o Barcelona a pagar custas de advogado e afins por cada adepto do clube que atire pedras a autocarros de adversários.

A 3ª conclusão: Se cada instituição regrada, respeitável e respeitada, por oposição, assumisse por ridiculo a defesa do Quim Manel e da sua pedrada ao autocarro do Real Madrid, está então por força da lógica a assumir implicitamente a representação do mesmo adepto mas agora de facto, caso oposto, não teria de o fazer. Ou seja, fazendo essa defesa está a dizer que afinal, o Quim Manel não estava a titulo meramente pessoal a atirar pedras; ninguém defende publicamente alguém sem que haja entre a defesa e o defendido alguma relação, logo, representação de facto. Se a instituição o fizer, está a atravessar-se forte e feio, para o bom e a para o mau. O bom senso diz-nos, precisamente, que deve ocorrer o oposto, tratando em sede disciplinar interna - no seu recato e privadamente - se assim o entender, a questão da pedrada do mero adepto. Isto se ele for sócio, pois se nem isso, então o ridiculo é maior. Casos de Polícia trata a mesma.

4ª conclusão e última: Parece evidente que há uma desarticulação clara entre o que é a tal representação lata e genérica e o que cada individuo acha dessa mesma representação, diferença tão grande como a que há entre a Madre Teresa de Calcutá e a Silvia Saint. Que apenas revela o quão desestruturada será a noção de disciplina - hoje, só se clama direitos mas quanto a obrigações a amnésia instala-se.. - no seio de uma instituição. Obviamente que mais não resta à mesma que uma de três soluções: Ou passa à frente, ou assume a dores do Quim Manel e amplifica a pedrada numa imensa guerra nuclear da qual vai sofrer inevitáveis consequências ou então trata internamente a questão conforme mandam, aliás, pasme-se, as suas próprias regras disciplinares. Parece-me que a 3ª via é a correcta, sensata e mais adianto, óbvia por lógica.

Bem sei que estas questões se podem revelar até algo complexas na sua análise. Mas precisamente por essa razão é que a noção de disciplina interna e a de representação assumem toda a pertinência.


Comentários

Marta disse…
Excelente post, excelente reflexão. Está tudo dito.
Eduardo disse…
Meu caro:

Para o bem e para o mal, fui a meu tempo figura sobejamente conhecida no meio académico portuense, o que colocava problemas aborrecidos: ora era visto como Dux da minha faculdade, ora como sócio da instituição a que pertenci, mesmo que fosse apenas à cantina comer (isto é força de expressão...). Os outros sabiam lá em que qualidade é que me encontrava em tal ou tal lado? E como podiam saber? Quem me conhecia como Dux, via em mim o Dux. No dia seguinte, dizia-se que o Dux de X estivera aqui ou ali e fizera isto ou aquilo, ou que «o nosso Dux» até sabe tocar o instrumento Y. Às vezes, era o sócio de Z que estava a praxar caloiros em W. Outras ainda, era o magister de H que estava a apanhar sol em G. E por aí fora, antes que se me acabem as letras do alfabeto...

Ora isto tudo vem a dar no seguinte: independentemente da condição em que cada um de nós se encontre, será sempre difícil os outros dissociarem-nos das instituições a que cada um de nós pertence, mormente quando se goza de uma certa projecção (e não tenhamos medo nem vergonha das palavras) em determinados meios. Como se habituaram a ver-nos nesta ou naquela qualidade, instintivamente vão assumir que nos encontramos em tal sítio nessa qualidade.

Assim, é importante que cada um de nós tenha em mente que - queira ou não - os outros vêem-nos como querem, não como nós muitas vezes desejamos: é o preço de uma certa fama, com a qual temos de saber conviver. Sem sermos escravos da mesma, temos de perceber que não é a mesma coisa uma atitude praticada por um desconhecido ou praticada por alguém que goza de algum prestígio.

POR FAVOR: relativize-se as expressões «prestígio», «fama», etc.

É igualmente importante o contrário: quem nos vê terá de tentar discernir a qualidade em que nos encontramos em cada momento. Isto é, o(possível) silogismo "Fulano pertence a X, que usa o traje Y; fulano está com o traje Y; logo fulano está em representação de X" não é verdade universal - ou pelo menos não é verdade em todos os casos.

O problema põe-se, portanto, TAMBÉM e às vezes SOBRETUDO a nível das expectativas dos outros.

É verdade que eu tenho de ter em mente que sou visto como sendo membro de X em especial quando trajo Y. Assim, tenho de moderar o meu comportamento ao nível dessa realidade.

Mas não é menos verdade que os outros também terão de saber discernir quando, mesmo estando com traje Y, estou ou não em representação de X.

E terão de ter especial cuidado neste discernimento todos os que têm um qualquer tipo de responsabilidade institucional ou que já sejam mais batidos nestas coisas.

Há leviandades que se toleram num caloiro - tanto a nível de saber traçar os limites entre a sua qualidade de representante de... e a sua qualidade de indivíduo, como de aferir essa representatividade (ou falta dela) nos outros - e lançar logo anátemas a torto e a direito, misturando a parte com o todo e o meio com os lados.

Às vezes, somos nós quem criamos o nosso próprio inferno: compramos o carvão, as acendalhas, regamos com nitroglicerina e disparamos um lança-chamas atestado de napalm, tendo-nos previamente algemado alegremente a um poste milimetricamente colocado no centro geométrico do braseiro.

Mas às vezes (quase sempre) «L'Enfer c'est les autres».

Abraço!
Eduardo disse…
Ó meu caro:

tanta coisa, tanta letra do alfabeto, tanta substância combustível, tanto "franciú" da minha parte, para afinal me faltar dizer o essencial:

estou 100% de acordo com mais esta excelente aventura.

Aquele Abraço!
Ilustre:

Cito-te na ocasião em mais uma daquelas verdades que deveriam ser, se não corroboradas, pelo menos apreendidas por todos:

"Às vezes, somos nós quem criamos o nosso próprio inferno: compramos o carvão, as acendalhas, regamos com nitroglicerina e disparamos um lança-chamas atestado de napalm, tendo-nos previamente algemado alegremente a um poste milimetricamente colocado no centro geométrico do braseiro." (fim de citação)

Touché!

Abraços!