A Aventura da Tuna Espanhola no Franquismo (II)

Já abordei de alguma forma esse período da História da Tuna espanhola em post anterior . Será pertinente que também se contextualize historicamente e nesse período - que marcou o surgimento do certame competitivo de Tunas - como funcionava o mesmo e, por outro lado, algum desmistificar de uma noção que "cola" a um determinado contexto político que, para lá do referido no tal post que em tempos aqui coloquei, não trouxe só desvantagens, também trouxe contributos efectivos ao fenómeno como veremos adiante, sendo que alguns traços são mais tarde importados por nós em Portugal.


A Tuna em si representava um colectivo potencialmente perigoso aos olhos da ditadura de Franco que, como todas as ditaduras, impôs um duro controle relativamente ao direito de associação e reunião, sobretudo se tivermos em conta as suas bases, ou seja, estar integrada por estudantes (eventualmente subversivos) e exercer o seu domínio quando o dia caí e a noite surge...


Deram conta muito tarde desta circunstância as hierarquias do regime e quando o quiseram fazer já a Tuna gozava das simpatias dos cidadãos. Os que ainda eram meninos quando a guerra civil começou e, por tal, desconheciam a tradição, viam na Tuna uma curiosa novidade, em contrapartida, aos mais velhos, trazia recordações dos tempos de paz. O fenómeno agudizou-se com a proliferação inusitada de agrupamentos juntamente com a vontade que tinham cada vez mais de difundir a sua arte para lá da fronteira dos Pirinéus para fugirem, assim, à guerra.


A contingência de que há Tunos contrários ao sistema procura-se controlar por dentro do próprio grupo, exigindo como requisito de admissão que o candidato, além de ser universitário maior de 17 anos e menor de 27 e com suficientes conhecimentos musicais, careça de “nota desfavorável no expediente sindical” (art. 3º da Ordem de 12 de Novembro de 1955 núm. 195 (BOE 7 Dezembro 1955, referência Aranzadi 1672. Boletim de movimento núm. 642 de 1 de Dezembro, que pretendeu regular a própria organização e funcionamento das tunas)


Trata esta regulamentação outros temas que aparentemente parecem ser menores mas que pouco a pouco se revelam maiores, quando normalizam certos complementos do traje de Tuno, que identificam o seu proprietário, ou as insígnias que obrigatoriamente terão de usar na bandeira da Tuna.


Como se não bastasse, incide-se na necessidade de evitar dentro do possível a formação de Tunas de Faculdade ou Escola Especial, salvo em casos que circunstâncias especiais o aconselhem, devendo-se solicitar ao Serviço Nacional de Tunas a autorização respectiva (art 8º).


A Tuna de Ingenieros Tecnicos de Valência (Peritos Industriais) foi fundada em 1956, tendo sido a 1ª classificada dos Certames Nacionais em Oviedo nos anos de 1962 e 1965, bem como obtido o 2º lugar no Certame Nacional de Tunas de Córdoba, em 1964. Os participantes naqueles eventos relatam que existiam muitas diferenças entre os certames de então e os actuais, sendo que os certames dessa época eram realizados à porta fechada e com a única presença do Jurado, sendo valorizada exclusivamente a qualidade musical das interpretações, sem que fosse permitido o mínimo devaneio humorístico, e frequentemente com interpretações obrigatórias de música clássica (Beethoven, Mozart) inclusivamente com partitura (e aqui caí o mito que por cá vogou que a Tuna não pode interpretar música dita erudita ou clássica..)


Um Decreto datado de 1955 dizia expressamente então que só poderia existir uma Tuna por cada Distrito Universitário espanhol - forma de organização geográfica universitária em Espanha, então - sendo que por força do mesmo muitas tunas surgidas começam a utilizar o termo Estudiantina para contornar o dito cujo decreto. As Tunas do S.E.U. levavam para as suas actuações ilusionistas, músicos profissionais, humoristas, etc que matriculavam numa Escola ou Faculdade para dar cumprimento à normativa legal vigente nessa época.

Aquando dos primeiros certames de tunas somente era permitida uma tuna por Distrito universitário – forma organizacional geográfica na Espanha universitária de então e que hoje não existe – e no caso de existirem várias no mesmo Distrito, ou se elegia criteriosamente a que ia ou se fazia um concurso sendo que a que ganhava estaria presente no certame. O 1º Certame de Tunas ocorrido no pós Guerra Espanhol, sob a alçada da Jefatura Nacional do então S.E.U. - Sindicato Espanhol Universitário - organização estudantil inserida na Falange Espanhola do Caudillo Franco, realizou-se em Madrid nos dias 5 e 6 de Março de 1945 tendo nele participado as então Tunas de Salamanca, Valência, Valladolid, Santiago de Compostela, Córdoba e Madrid. O 2º certame realiza-se igualmente em Madrid mas 9 anos depois e o 3º em Cadiz, no ano de 1956.


No Certame Nacional de Tunas celebrado em Saragoça, entre 16 e 19 de Março de 1959, a Tuna Cordobesa, verdadeira orquestra de câmara, onde figurava inclusivamente um ou outro instrumento não característico de Tuna, não alcançou nenhum dos troféus em disputa, no entanto o Jurado recordou que a Tuna de Córdoba é a melhor de todas as que desfilaram por estes concursos nacionais, mas não lhes foi adjudicado o 1º prémio por não cumprirem com as normas estabelecidas (Diário de Córdoba – 20/3/1959).


As Tunas Universitárias do S.E.U. ofereceram alguns apontamentos e contribuições significativos:

Tornaram a Tuna mais popular difundindo-a, graças a uma enorme quantidade de edições discográficas que foram editadas nessa época e suas frequentes aparições em programas televisivos e filmes cinematográficos.

A maioria das músicas mais conhecidas foi criada nessa época. Foi igualmente neste período que se juntou à indumentária de Tuno a Beca, que com o proliferar das Tunas de Faculdade, Escolas Especiais e Colégios Mayores substituiu o laço que com a sua cor identificava os estudos que cada Tuno seguia.

As fitas (cintas) bordadas de cores várias como recordação feminina e que os Tunos pendiam das suas Capas, dando-lhes uma policromia muito superior àquela que tinham as Tunas antes da Guerra Civil, e cuja origem se encontra nas que os cavaleiros medievais recebiam das suas Damas.


Também surgiram neste período os símbolos ou escudos de distintos países ou cidades visitadas cozidos nas suas capas – influência da moda mochilera tão em voga então. Lamentavelmente e em sentido oposto desapareceu hoje o Bicórnio, muito usado então e que hoje raramente é visto.


Quanto ao reportório, apresentavam temas ditos de Tuna, temas nacionais, peças de música clássica e temas do vasto folclore sul-americano. Esta variedade de estilos trouxe a normal variedade de instrumentos necessários para os executar. Normal era também o uso do acordeão, os violinos continuaram a ser usados embora cada vez menos e o Laúd aumentou de prestígio e importância.


O S.E.U. entendeu proteger a pureza instrumental das Tunas, autorizando a utilização única em concurso de Bandurrias, Laúdes, Bandolins, Guitarras, Violinos e Pandeiretas, devendo o Jurado do certame controlar se os instrumentos presentes em palco correspondiam ou não aos acima descritos.



Nota de Autor: Para percebemos o que fazemos e como fazemos hoje é extremamente relevante perceber, em sequência cronológica, o que aconteceu antes, atrás. Será pertinente pois analisar esta "Aventura" numa perspectiva profilática, projectando a mesma no que hoje ocorre. Quiçá, será o melhor contributo para que o certame competitivo em Portugal se auto-dignifique e auto-responsabilize, mesmo descontando o facto histórico de nesta "Aventura" a tuna ser retratada e historiada num tempo ditatorial e não democrático - como o é (vai sendo) o de hoje...

Comentários

J.Pierre Silva disse…
Um artigo precioso que me leva a confirmar que, por cá, faria falta um organismo regulador. Já não digo em moldes tão ditatoriais, mas que fosse sinónimo d eexigência e qualidade.

No fundo, se tanto hoje admirqamos as muitas virtudes do modelo espanhol (apesar de ter os seus defeitos) é porque, em determinada altura (e falo, fundamentalmente, do paradigma da Tuna-Instituição) se puseram "estacas" para que o ramo crescesse direito.

Aqui, neste nosso cantinho, corremos o risco de, como diz o ditado, ilustrar o "torte nasce, torto morre".

Se a Tuna Espanhola, de certa forma, se auto-regula sem precisar de qualquer organismo é porque, em tempos, lhe impuseram (bem ou mal) regras que determinaram (e determinam, ainda), muitos do straços hoje considerados dogmáticos e essenciais da Tuna Espanhola.

Parabéns pelo teu artigo que até vem em boa altura, acompanhando um pouco aquilo que tem sucedido no Canal História onde, recentemente, se tem dado destaque (através de documentários vários) à época do Franqismo.
Cuidado com as interpretações extensivas. Tive o cuidado de referir en nota de rodapé que tudo isto deve ser visto de forma profilática. Não foi, não é e não será minha intenção sugerir qualquer copy/paste de metodologias anteriores, antes e sim documentar o que aconteceu para que se possa perceber os caminhos que acontecem hoje e que amanhã poderão ser percorridos.

Aliás, retrata esta "Aventura" uma época precisa na história espanhola e que após a mesma viveu um período completamente diferente - e após 1975 em diante - e que mais tarde irei documentar também e que, aliás, é o período mais desconhecido entre nós, os anos 70 e 80 da Tuna espanhola.

Não vou por isso, "colar" esta "aventura" a uma pretensa defesa da instituição de um organismo regulador e nem sequer foi essa a intenção do mesmo, que fique absolutamente claro, até porque a existência desse organismo regulador - a haver um dia - só pode ocorrer com a aceitação do mesmo por parte dos que o possam compôr eventualmente, ou seja, falamos em algo que neste momento não tem qualquer base de sustentabilidade e olhando para o panorama tunante nacional.

A Tuna espanhola autoregula-se ao longo da história da mesma e sempre em momentos decisivos, se a estudarmos - como estou precisamente a fazer neste momento - com algum detalhe e poondo de lado teorias românticas elevando antes a pesquisa mais "cientifica" porque documentada.

Esta "aventura" mostra claramente de onde surgem determinado tipo de costumes e tradições associados ás tunas mesmo em Portugal nos dias de hoje, provando claramente as origens e derrubando algumas teorias de 3/4 de mês que por aí pululam. Mostra esta "Aventura" como a Tuna sobreviveu a regimes políticos tão distintos como sendo uma Ditadura ou uma Democracia, a um estado Repúblicano ou Monárquico e por aí fora. Mostra a verdadeira essência da Tuna, afinal. E é "só" essa a mensagem que pretende passar, como disse anteriormente.

Abraços!
J.Pierre Silva disse…
Nem nunca pretendi que tivesses afirmado ou sugerido tal!
Contudo a história e o seu estudo não deixam nunca de nos dar lições e ser um meio privilegiado de aprendizagem.

Olhando ao que hoje se passa, à luz do exemplo alheio, é que reafirmo que, mediante o que todos reconhecemos do estado da Tuna Portuguesa, haveria muito a aprender com os nossos vizinhos, até das suas épocas conturbadas.
Sim, não posso estar mais de acordo. Temos muito a aprender com os nossos vizinhos do lado em matéria Tunante, sem dúvida alguma. Bem como eles connosco noutros prismas, quiçá. Em suma, todos temos a aprender com o que a história nos legou.

Forte abraço!
Em todo o caso, por exemplo, o epísodio ocorrido no certame de 1959 com a Tuna de Cordoba deveria servir como exemplo para TODAS as organizações de certames honradas, regradas e sérias. Cá está um bom exemplo com 50 anos que deveria ser liminarmente adoptado por cá.

Porque não é preciso ninguém que nos regule superiormente para nos dar-mos ao respeito, vai é de cada um, de cada Tuna.